Não me pergunte o motivo, eu não saberia explicar. Mas adoro cidades amuralhadas. E Elvas ainda tem – além da muralha, dos fortes, do centro histórico e do embasbacante Aqueduto da Amoreira – a vantagem de ser um destino off the beaten track. As fotos a seguir foram feitas do Forte de Santa Luzia, que ocupa o topo de uma colina bem pertinho da cidade.

Elvas e sua muralha do século 17 clicadas do Forte de Santa Luzia

Mais perto um pouquinho (oferecimento da minha AF-S Nikkor 18-200mm ED)
No post anterior, citei o engenheiro militar Cosmander, figura histórica das mais intrigantes. Reproduzo aqui um pouco da história dele, em texto extraído do blog Guerra da Restauração:
“Joannes Cieremans, mais conhecido em Portugal como João Pascácio Cosmander, nasceu em Hertogenbosh (Países Baixos) em 7 de Abril de 1602 e morreu em Olivença em 18 de Junho de 1648. Padre da Companhia de Jesus, notável matemático e engenheiro militar, fez parte do grupo de arquitectos e engenheiros estrangeiros contratados no início da Guerra da Restauração para fortificar as praças de guerra da fronteira e da orla marítima. A Cosmander se devem, entre outros trabalhos, o forte de Santa Luzia em Elvas, o de São Tiago em Sesimbra, a fortificação da praça de Juromenha e vários melhoramentos das defesas de Olivença.
Numa época em que as fidelidades mercenárias dependiam da boa recompensa em metal sonante pelos serviços prestados, de preferência dispensada com pontual regularidade (condição muito difícil de cumprir, dadas as dificuldades financeiras da Coroa), era natural que alguém com o talento e o saber de Cosmander fosse tentado pelo inimigo a trocar de campo. A ocasião – muito provavelmente premeditada e planeada pelos espanhóis, com recurso à espionagem – proporcionou-se em Outubro de 1647, quando o engenheiro regressava de uma das suas frequentes deslocações a Lisboa. Perto da Fonte dos Sapateiros, a cerca de duas léguas (10 Km) de Elvas, saiu-lhe ao caminho uma pequena força de cavalaria espanhola – apenas uma dezena de cavaleiros comandados por um alferes – que o levou prisioneiro e a um criado seu para Badajoz. Conduzido mais tarde a Madrid, à presença de Filipe IV, foi convidado a entrar ao serviço deste soberano, proposta que acabou por aceitar. A selar o novo compromisso de fidelidade, Cosmander traçou um plano para a conquista da praça de Olivença, que muito bem conhecia.
Na madrugada de 18 Junho de 1648, João Pascácio Cosmander intentou tomar de assalto o seu objectivo com uma força de 1.000 infantes e cavaleiros. A acção é referida em muitos documentos dispersos, mas a descrição mais colorida deve-se ao então soldado de cavalaria Mateus Rodrigues, que passo a transcrever, com a devida adaptação para português corrente:
(…) Quando vinha já amanhecendo (…) já ele [Cosmander] estava à roda da vila, e para melhor dizer dentro dela, e a ordem e modo como entrou foi assim como os castelhanos iam passando por umas hortas que chamam da Rala, onde havia muitos hortelões, e assim como viram os castelhanos lhe não pareceram homens, senão porcos, e como as hortas estavam mui cheias de hortaliça naquele tempo, tomaram paus nas mãos para ir a botar os castelhanos fora dizendo «Valha o diabo! Quem trouxe aqui tanto porco, donde veio isto?». E os castelhanos mui calados, marchando para a vila, e averbando com a muralha se meteram dentro por escadas, e mais estando a muralha com suas sentinelas nossas, mas quando a nossa gente se começou a alvoroçar e a gritar «Armas! Armas!», já o inimigo estava[com] muita (…) da sua infantaria dentro da vila. E no Rossio de Santo António [já]estava um batalhão de 1.000 infantes formados (…), [que] por um buraco que na muralha estava (…) [tinha entrado] uma manga de castelhanos, todos aventureiros e gente escolhida. De modo que ainda estava toda a gente da vila na cama , e muitos (…) tinham por parvoíce o dizerem que estava o inimigo dentro da vila. Logo começaram a ir-se levantando todos muito depressa, uns mal calçados e mal vestidos, e a gente de cavalo acudindo, uns em sela, outros em osso, que havia uma notável confusão da vila em ver já o inimigo dentro sem lhe poderem valer (…). E a tudo isto o Cosmander andava lá fora da vila dando ordem para meter a sua cavalaria dentro (…), e foi buscar um petardo para ele mesmo lhe pôr fogo às portas, para que entrasse a sua cavalaria, e assim como o trouxe para junto da porta, já neste tempo a nossa trincheira tinha muita gente defendendo (…). De modo que tanto que Cosmander veio com o petardo para as portas, sem se lhe dar das balas que neste tempo choviam da muralha, e ele só, trazendo o petardo às portas sem se lhe dar de nada, e a sua cavalaria toda já à vista esperando que ele botasse as portas dentro para virem entrar, mas tanto que ele se veio arrimando às portas, começaram da muralha bradando todos «Eis ali Cosmander! Eis ali Cosmander!». Mas apenas (…) o nomearam, já ele estava estirado no chão com uma bala, que estava na trincheira um carpinteiro com uma espingarda nas mãos, (…) [que] assim como o viu, já o tinha aviado, ao qual carpinteiro fez El-Rei mercê. Assim como o inimigo viu este homem morto, parece que se acabou o seu encantamento, que não houve mais castelhano que pegasse em arma senão tratar cada um de fugir mais. Os que estavam fora logo se retiraram a bom passo e os que estavam dentro levaram tal esfrega que não sabiam por onde se meterem. (…) O batalhão que estava já no terreiro de Santo António (…) [foi atacado e ficou] em breves horas em miserável estado, que como não tinham já outro remédio se metiam pelas casas e se escondiam por debaixo das camas (…). É certo que não escaparam nem 50 homens dele.
Uma esfrega, é certo, mas como em outras partes das suas memórias, Mateus Rodrigues deixou-se levar pelo exagero dos números. Segundo a carta enviada no dia seguinte a D. João IV pelo governador das armas do Alentejo, Martim Afonso de Melo, foram apenas 300 os soldados inimigos que conseguiram entrar na praça, dos quais 154 foram mortos e 35 feridos e capturados, entre os quais 3 capitães. Quanto aos portugueses, sofreram menos de 20 baixas, mas entre estas contaram-se o mestre de campo D. António Ortiz, morto, e o governador militar da vila, D. João de Meneses, gravemente ferido.
Assim se finou João Pascácio Cosmander, com uma bala ajustada por um carpinteiro. Conforme referiu Mateus Rodrigues, e nisso é corroborado por outros documentos, o engenheiro jesuíta bateu-se até ao fim com bravura: tendo falhado o primeiro petardo que colocara na porta, Cosmander voltou atrás, indiferente ao perigo, de modo a colocar um segundo engenho, acção que lhe foi fatal. A interpretação nacionalista dos acontecimentos – não só a do típico nacionalismo restauracionista da época, como a do nacionalismo romântico dos séculos XIX e XX – estigmatizou João Pascácio Cosmander como um traidor que teve o fim merecido. Mas como refere Vítor Serrão, “as dramáticas vicissitudes da sua morte (…) não invalidam o grau de novidade construtiva das empresas militares que gizou e que profundamente alteraram em eficácia e em fisionomia o carácter das linhas defensivas portuguesas” (SERRÃO, Vítor, História da Arte em Portugal – O Barroco, Barcarena, Editorial Presença, 2003).”
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